Sementes da vitória

EDIÇÃO 201 – JUNHO 2010

Sementes da vitória

POR VICENT SOBRINHO ([email protected])

Um convite à imaginação: Imagine-se sentado à beira da pista do Engenhão em 2016, naquele silêncio antes do tiro de largada, ouvindo o narrador no sistema de som: “Olimpíadas do Rio de Janeiro, 19 de julho de 2016. Estamos a 30 segundos da largada da final dos 800 m. Na raia 4 Lenita, esperança brasileira de medalha. Amanhã último dia do atletismo, poderemos ampliar ainda mais o quadro de medalhas de ouro. Teremos nosso Rafael “Galego” e André, o “Ligue”, que poderão sagrar-se campeões olímpicos respectivamente dos 1500 e 5000 m”.

Esse ensaio de futurologia pode parecer impossível, principalmente por vir de um ex-goleiro de futsal. No entanto não é, e foi a narração desse sonho que ouvi no primeiro contato que tive com o corredor Francisco Carlos da Silva ou simplesmente professor Fran, que vem materializando vários outros desejos. “Sonho todos os dias com uma de nossas crianças disputando uma Olimpíada, imagino uma TV montada ou quem sabe um telão e no momento da largada vejo todos sentados na mesma rua onde tudo começou, torcendo e se emocionando por termos colhido o fruto de uma semente plantada numa pista de asfalto na rua. Quando parar, terei certeza que muitas sementes surgidas nessa pista de rua estarão dando frutos por este mundo afora.”

O primeiro sonho de Fran foi há 12 anos, quando criou a Associação Esportiva Cultural Kauê. “No início era um time de futebol de salão, depois foi crescendo e hoje realiza várias atividades esportivas, culturais e sociais, como atletismo, futebol, kickboxing, capoeira, aulas de violão, origami, reciclagem, biblioteca e atualmente instalando uma sala de alfabetização de adultos e laboratório de informática”, explicou Fran.

 

TUDO COMEÇOU NA SÃO SILVESTRE. Mas, de onde veio essa paixão pela corrida? “Fui contagiado na primeira participação da São Silvestre, em 2001. Naquele dia percebi que poderia fazer do esporte uma ferramenta de transformação social e me entreguei para a corrida de rua.” Fran recorda que o ‘estalo’ veio durante a prova, mas só após 1h17, ao completar, refletiu. “Larguei lá de trás, no povão, o calor passava dos 30 graus, como muitos eu me perguntava o que estou fazendo aqui? Ainda atuava no futebol, mesmo assim paguei caro, pois correr não era o meu esporte.” A emoção foi grande na subida da Brigadeiro: “Eu estava nas últimas, todos que me passavam me perguntavam se eu estava bem, me ofereciam água, gel, o que tinham; fiquei impactado com o comportamento e a esportividade dos corredores. Quando dei por mim, era só satisfação e alegria ao cruzar a linha de chegada. Indescritível! Essas atitudes são marcantes, é a diferença da corrida de rua.” Um ano depois, Fran voltou à São Silvestre e já correu abaixo de 1h10, muito mais informado; devorava tudo sobre corrida, alimentação, treinamentos e vencia a barreira dos 40 minutos nos 10 km. A próxima será sua 10ª São Silvestre. “Participo para que as crianças acreditem que podem iniciar na corrida de rua” afirmou.

O filho Kauê é o grande ídolo de Fran, daí o nome da associação. “Em 2002 inscrevi ele na São Silvestrinha, tinha apenas seis anos, a empolgação pela medalha fez com que eu desejasse aquela alegria para todas as crianças da rua. Elas são a nova geração do nosso bairro.” No ano seguinte Fran levou, com recursos próprios, 12 crianças para correr a São Silvestrinha e na última foram mais de 40. Atualmente treinam com Fran 60 crianças e 40 adultos, em sua grande maioria de terceira idade. A palavra abnegado define alguém que se sacrifica por outro desinteressadamente, altruísta. “Assim é Fran, ele se doa pela educação esportiva para crianças” disse Katia Cilene Barbosa, mãe da aluna Giovana, de 8 anos. “Ela começou a correr em 2007 e briga para treinar. A corrida deixou-a mais responsável e disciplinada com relação aos horários. O Fran é tido aqui como um segundo pai para todas as crianças do bairro; ele é um disciplinador,” ressaltou Katia.

Atualmente a AEC Kauê tem a corrida de rua como prática principal. “Durante esses anos realizamos tudo sem termos um local próprio, mas há pouco mais de cinco meses recebemos a colaboração de pessoas do bairro que pagam o aluguel da sede, porque antes combinávamos tudo em reuniões comunitárias, praticamente no meio da rua ou na minha casa,” observou Fran.

 

COMO FOI FEITA A PISTA. A rua Nicolino Mastrocola, na Vila Corberi, fica distante 25 km da Praça da Sé, centro da capital paulista, e a aproximadamente 800 metros da saída do Metrô Itaquera-Corinthians. Qualquer um que passar por lá começará a entender porque Fran acredita em seus sonhos. Ele transformou a rua em uma pista de 200 metros, com 5 raias de 60 cm de largura, com uma leve curva após os 60 metros iniciais, e na cor vermelha, visualmente igual às pistas oficiais. “Tentei chegar o mais próximo da realidade, já sonhava com ela desde 2002”.

Fran conta que a idéia da pista surgiu principalmente da reclamação de uma menina que se assustou ao ver o tamanho da pista pela primeira vez em uma São Silvestrinha. “Quando chegamos ao estádio Ícaro de Castro, no Ibirapuera, uma menina de 8 anos ao se deparar com uma pista de verdade logo me perguntou se era lá que teria que correr; disse que sim e ela me respondeu.´Estou com medo, não sei como correr aqui!´”, lembrou Fran. Dessa forma, ele começou a planejar um jeito de resolver esse problema. “A pista mais próxima fica a 45 minutos de carro e é difícil estar disponível para treinar e por isso resolvi levar a pista até eles.” Foram utilizados 180 litros de tinta vermelha e 18 de tinta branca, pintada em apenas um final de semana por um pedreiro, um pintor de casa, um vendedor e um consultor de informática. “Começamos no sábado a uma da tarde e acabamos às nove da noite do domingo!

A principal intenção de Fran era de passar segurança para seus alunos, “para que não se assustassem mais quando se deparassem com uma pista oficial que para estes é muito grande porque são pequenos” observou. Foram muitas as dificuldades, pois quando contava aos moradores sobre a sua intenção, as pessoas achavam impossível; “ouvi várias vezes que isso era coisa de maluco, porém jamais desisti, pois iria contra tudo que prego para as crianças do Projeto; sempre faço com que eles acreditem e que são capazes, dizendo ´vocês são do tamanho do seu sonho´, e ao falar de uma possível pista na rua, fiz com que surgisse uma grande expectativa na cabeça de todos, principalmente dos menores.

Na festa de inauguração da pista, mais de 400 pessoas da comunidade se reuniram para comemorar e Fran lembra que aproveitou para reforçar seu projeto: “Jamais devemos deixar de acreditar naquilo que desejamos; não tenha vergonha nem medo de dividir com alguém seus sonhos por mais malucos que eles sejam; acredite, lute para torná-los realidade, com o tempo outras pessoas passarão a acreditar e vão lhe ajudar a viabilizá-los. Sou louco sim, mas, por amor e dedicação às crianças da comunidade hoje temos nossa pista de atletismo, sonho que dividi com eles, e mesmo que seja no asfalto é um orgulho para todos e principalmente para as crianças!”

 

“CORRENDO PARA O FUTURO”. No dia 4 de abril foi a comemoração de 12 anos da Associação Esportiva Cultural Kauê de Itaquera e o tema da festa foi a escolha do nome da pista, que estava sendo inaugurada. Foram realizadas corridas com participação de mais de 300 crianças, de 3 a 15 anos. Uma semana antes do grande dia da inauguração toda a comunidade se reuniu e vários nomes para a pista foram sugeridos, no entanto três foram para a finalíssima: Pista dos sonhos, Correndo para o futuro e A caminho do pódio. “Correndo para o futuro” foi escolhido em um concurso organizado pelas próprias crianças em assembléia. “Tudo que acontece na Kauê tem participação das crianças”, afirma Fran.

Marta Maria Soares, atendente, mãe de Julia, 10 anos, comenta: “Julia sugeriu o nome vencedor; gosta de correr na pista e estuda mais para poder treinar; o desenvolvimento escolar melhorou e eu fico muito orgulhosa quando ela ganha uma medalha. Existem muitos problemas por estarmos em uma região carente, por essa razão a pista é uma esperança que veio melhorar a auto-estima de todos aqui.”

Fran orienta todos os corredores e futuros atletas da AEC Kauê e explica o porquê dos treinos não acontecerem todos os dias no asfalto. “Temos consciência do piso duro e sei o que o asfalto pode provocar problemas nas articulações e tendões. Por isso procuramos sempre dividir os treinos por faixa de idade e vamos exigindo mais daqueles de demonstram interesse (e capacidade) em seguir a carreira de atleta. Após a identificação desse talento passamos treinamentos diferenciados, porém parte das crianças da comunidade quer apenas treinar para estar com os amigos e se divertir.”

 

DA RUA PARA O PINHEIROS. Fran conheceu Cláudio Castilho, técnico de atletismo do Esporte Clube Pinheiros, após uma prova infanto-juvenil realizado em 2009 no Parque da Aclimação em São Paulo, onde a AEC Kauê ganhou como prêmio passar um dia nesse clube de classe alta com tradição esportiva. “Nossas crianças foram recepcionadas pelo atleta olímpico Jadel Gregório”, recorda Fran.

Castilho observa que a compreensão de uma pista de atletismo no desenvolvimento de uma criança a deixa um passo à frente. “É uma fase adiante, a base é mais completa se ela tiver noção do que é uma pista. A atitude do Fran é louvável, pois a simples apresentação das possibilidades faz a criança entender melhor o que é uma semifinal, uma final olímpica, aprende que uma coisa é conquistar um índice, outra é um lugar no pódio. Por isso, quem treina em pista percebe melhor essa diferença” esclareceu Castilho.

Quanto à preparação de atletas de pista para conquistas na Olimpíada Rio 2016, o técnico do Pinheiros alertou que o Brasil está um pouco atrasado: “Temos menos de seis anos para se fazer um bom papel no atletismo. O problema é que são poucos os juvenis nas pistas. Já tínhamos que ter mais atletas treinando.” Preocupado, ele alerta: “A formação multidisciplinar do atletismo é necessária, são poucas as oportunidades dos jovens conhecerem as várias modalidades do atletismo. ”

Castilho comenta a respeito de dois garotos que vieram da Cauê e que agora treinam no Pinheiros. “O que me chamou a atenção em Rafael foi seu interesse nos treinamentos. Afinal, ele tinha apenas 15 anos.” Ao notar todo o esforço, Claudio disse ao professor Fran – “O Rafael está determinado a ganhar sua chance para treinar conosco!” Mas, para ser do clube precisava fazer resultados expressivos, era necessário Rafael se encaixar entre os 10 melhores tempos de sua idade e ele conseguiu. “Este ano, dez dias depois de completar 17 anos, em 30 de abril, Rafael cravou 9:00 nos 3000 m. Já fez 5000 m para 15:45 e agora definimos que ele irá treinar para provas curtas. Está no ranking brasileiro entre os três melhores tempos nos 800, 1500 e 3000 m e em breve nos 5000 m”.

Claudio também elogia André, o Ligue. “É lutador, divide o tempo com trabalho e treinamento, treina todos os dias em um período. O André me procurou através do Fran, faz 1 ano e meio. No início ele corria tudo, de 1500 m (3:59) a 5000 m (15:30), mas já abaixou os 15 minutos e recentemente ele fez 3:53 nos 1500 m. Oferecemos material esportivo, ajuda alimentação e em apenas três meses ele já deu resultado, fazendo 2:06 nos 800 m e 4:10 nos 1500 m. Vejo as corridas de rua como a porta de entrada para a apresentação do atletismo, é o pontapé inicial, porque a especialização vem na pista. Por isso admiro a iniciativa do Fran, que é espetacular. Se tivéssemos na base, no desenvolvimento e formação da criança, pessoas com a disposição do Fran o atletismo nacional estaria em outro patamar. Assim a juventude sente acontecer e é uma atitude nobre direcionar as crianças pelo melhor caminho,”concluiu Castilho.

AS TRÊS PROMESSAS DA CAUÊ

“GALEGO” AGORA ENTRE OS MELHORES. A visita ao EC Pinheiros, em 2009, rendeu frutos, sendo Rafael Soares Santeramo, 17 anos, um dos exemplos. “Galego”, como é conhecido em Itaquera, começou a correr aos 12 anos. “O professor Fran me levou para a minha primeira corrida, a São Silvestrinha; eram 600 metros e fui o 18º e 4º na bateria e aí resolvi treinar. Mas, era difícil, pois trabalhava para ajudar em casa, era vendedor de CD na rua 25 de Março, corria sempre, mas do rapa. Depois fui ajudante em banca de peixe nas feiras livres”.

Galego é o atual campeão brasileiro dos 1500 m e tem o 4º melhor tempo em 2010 das Américas e Caribe na categoria menor. “Quando pisei naquela pista em Fortaleza (Campeonato Brasileiro), lembrei das cartinhas de incentivo escritas pelas crianças e pelo pessoal da terceira idade da AEC Kauê entregues antes de viajar. Isso me ajudou e pensei: hoje não vou correr só por mim, mas por todos aqueles que acreditam que posso vencer.

Rafael está no EC Pinheiros desde 2009, logo após a famosa visita ao clube. “Quando fomos conhecer o Pinheiros, o professor Claudio assistiu aos primeiros testes de 100, 200 e 400 m que o Fran resolveu realizar lá, de surpresa; era um tipo de peneira, e antes da largada estava muito nervoso, mas me saí bem. Em agosto haverá o Brasileiro Juvenil, que está aguardando definição de local e irei correr os 1500 m. Em setembro será o Sul-Americano Juvenil no Chile. Ver a pista pintada foi emocionante, chegam crianças de bairros distantes para treinar aqui na nossa rua.

Rafael lembra um dos momentos mais felizes, quando há quase um ano as crianças da Associação se reuniram secretamente para lhe homenagear. “É o nosso primeiro orgulho”, afirma Fran, lembrando que na ocasião Rafael classificou-se para três provas – 3.000, 1.500 e 2.000 metros com barreiras. O técnico de Rafael no Clube Pinheiros orientou o atleta a disputar os 1.500 rasos e ele foi campeão brasileiro, conquistando também o índice para o Mundial da categoria menores. Hoje com 17 anos de idade desponta como uma das grandes promessas do atletismo brasileiro.

 

CORRA ELENITA… CORRA! Fran acredita que da pista de rua em Itaquera surge mais uma esperança olímpica: Elenita Maria da Silva Reis, 15 anos, órfã de pai desde os 7 anos, e que vem conquistando bons resultados nas provas de 3000 e 5000 m. Para treinar junto com as crianças do projeto da Kauê, Elenita viaja diariamente 45 minutos de ônibus da Cohab Etelvina até a Vila Corberi. Ela lembra que no início foi algumas vezes sem a alimentação adequada e com apenas o passe do ônibus. “Onde moro só ouvia críticas por praticar a corrida. Agora recebo apoio porque os moradores viram que sou um exemplo de vida numa região em que os jovens se entregam facilmente à droga e ao álcool.”

Elenita gosta de recordar o momento que recebeu uma medalha entregue pela Fabiana Murer no evento Pró-Atletismo, realizado este ano, com direito a um autógrafo da campeã brasileira de salto com vara. Mãe de Elenita, Rosemari Bispo dos Santos, auxiliar de limpeza diz que “o sonho dela é o meu e torço para que supere seus obstáculos e sempre acredite. Penso nela vencendo com a camisa do Brasil!” A empresa Vera Lana Recursos Humanos passou a patrociná-la em período integral; registrada como menor aprendiz, recebe
uma bolsa de R$ 650, assistência médica e odontológica, vale transporte, vale
refeição, cesta básica, acompanhamento psicológico e educacional e todo material esportivo para treinar.

Para ajudar a mãe a sustentar seus dois irmãos (antes do patrocínio), Elenita estudava pela manhã e trabalhava entregando próteses dentárias e auxiliando no laboratório das 13 às 22 h, treinando apenas nos finais de semana. O patrocínio possibilitou a ela fazer academia e treinar em período integral recebendo toda a orientação esportiva do professor Fran. “Não podemos salvar o mundo, mas a vida será diferente para Elenita que terá todo nosso apoio e inclusive de formação profissional”, ressaltou a empresária Vera Lana. Perguntada sobre seus objetivos, Elenita sem titubear respondeu que quer estar nas pistas no Rio 2016 defendendo o Brasil. No dia 24 de abril Elenita, com 15 anos agora, foi a segunda colocada na corrida de Barueri, na categoria adulto.

 

ANDRÉ LUIS CONFIANTE NO RETORNO. Outro atleta surgido na AEC Kauê é o “Ligue”, André Luis Silva, 24 anos. Após insistência de Fran, resolveu recomeçar no atletismo, voltando aos treinamentos em novembro de 2005. Talentoso, Ligue fez sua primeira corrida de 10 km, a Zumbi dos Palmares, em 35 minutos. “Comecei na AEC Kauê com o professor Fran, depois ele me levou para o Clube Desportivo da Penha, mas aí precisei trabalhar e parei por uns dois anos.”

Auxiliar de limpeza, André trabalha das 7 às 16 horas. “Só posso treinar a partir das 19 horas; conheci o EC Pinheiros por intermédio do Rafael e espero correr profissionalmente um dia. Quero ser um bom atleta de 1500 ou 5000, mas ainda não tenho patrocínio. Meu ídolo é José Teles, o maratonista olímpico, que corre pelo Pinheiros desde 2005.” Perguntado sobre o professor Fran, André respondeu: “A palavra mais próxima para definir o Fran é pai. Ele sempre esteve perto de mim, vigilante e preocupado, e estou aqui por causa dele, pois havia desistido; agradeço também ao técnico Claudio por ter acreditado em mim, mesmo adulto.”

 

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